sexta-feira, 3 de abril de 2015

Motores de válvulas laterais: ainda adequados a algumas aplicações, mas hoje muito subestimados

Motores de válvulas laterais, popularmente conhecidos como “flatheads” e ainda muito cultuados por entusiastas dos hot-rods, já reinaram absolutos no mercado automotivo. Porém, o grande público já os olha com um desdém que não condiz com a importância que tais engenhos tem num contexto histórico...

Equiparam ícones da indústria automobilística mundial como o Ford Modelo T, e mantinham um market-share razoável até a primeira metade da década de 50 nos Ford full-size americanos (substituído pelo Y-block com válvulas nos cabeçotes em 1954), permanecendo disponíveis em alguns automóveis compactos europeus (principalmente britânicos) até o começo da década de 60, e marcaram presença no Brasil até 1966 quando o Simca Chambord passou a usar o motor Emi-Sul que recorria a válvulas nos cabeçotes.

Hoje, encontram-se cada vez mais restritos ao uso em equipamentos estacionários/industriais de baixa cilindrada, favorecidos não apenas pelo menor custo de produção mas também pelas normas de emissões menos rigorosas nessas aplicações. E mesmo considerando limitações no tocante aos fluxos internos, é um grave equívoco subestimar a aptidão dos motores de válvulas laterais diante de condições operacionais severas. Um aspecto particularmente relevante nesse sentido é a lubrificação mais precisa mesmo submetido a variações de inclinação, muito frequentes em aplicações tão diversas quanto motosserras e aviões, favorecido pela eliminação das galerias de refrigeração no cabeçote e pela posição mais baixa do trem de válvulas com relação às demais partes móveis, resultando numa menor sensibilidade a oscilações na pressão do óleo. A maior leveza e redução do volume físico também os favorecem, apesar do bloco normalmente ser mais largo para acomodar as válvulas. Vale lembrar que, além dos cabeçotes mais complexos e salientes, motores com válvulas no cabeçote e comando no bloco (OHV) tem varetas de válvula que também ocupam espaço lateral, enquanto motores com comando no cabeçote (OHC quando simples ou DOHC quando duplo) quase sempre dependem de correntes (ou correias) sincronizadoras e respectivos tensores, que agregam complexidade à manutenção e podem vir a ser uma fonte de problemas a longo prazo.

A taxa de compressão mais baixa, muitas vezes apontada como um inconveniente, tem como mérito a maior resiliência diante de uma maior variação na qualidade do combustível, principalmente gasolinas de octanagem menor ainda usadas em algumas regiões da África e Oriente Médio. Tal característica vem sendo bastante observada por profissionais da aviação, devido à crescente busca pela eliminação do uso do chumbo tetraetila como aditivo antidetonante na gasolina de aviação (AvGas), e a possibilidade de usar qualquer gasolina disponível comercialmente mesmo em localidades inóspitas pesa favoravelmente aos motores de válvulas laterais nesse segmento, encorajando empresas como a D-Motor a desenvolverem projetos destinados a aplicações aeronáuticas. Há de se considerar ainda a lembrança da clássica imagem dos hot-rods da década de ’50 ostentando um blower (compressor mecânico, também conhecido como supercharger) entre as bancadas de cilindros num V8 Ford “flathead”, e justamente a taxa de compressão mais contida faz com que suportem com uma maior margem de segurança o uso da sobrealimentação a pressões mais elevadas do que seria possível num motor com válvulas no cabeçote e taxa de compressão mais elevada.

As faixas de rotação mais modestas também é apreciável em algumas aplicações, que podem ir de uma motocicleta off-road a um avião. O torque máximo disponível mais cedo, associado à menor inércia devido ao trem de válvulas mais simples, proporciona uma resposta mais direta na aceleração. Durante o Salão de Motocicletas de Bolonha em 2007, a fabricante espanhola de motos off-road Gas Gas chegou a apresentar o projeto de um motor monocilíndrico de 350cc com válvulas laterais que seria destinado a modelos de trial, com uma redline de 10500 RPM, mas o projeto acabou engavetado apesar de toda a expectativa.  Já nas aplicações aeronáuticas, que parecem ser hoje a última esperança por um ressurgimento glorioso dos motores de válvulas laterais, uma vantagem é a possibilidade de suprimir o conjunto de engrenagens de redução entre o motor e a hélice, reduzindo não apenas o peso do conjunto motopropulsor, eliminando também uma fonte de atritos que sacrificam a eficiência geral.


Por mais que hoje sejam considerados obsoletos, e de fato tenham algumas limitações, os motores de válvulas laterais ainda tem condições de atender perfeitamente a uma infinidade de aplicações, tanto estacionárias/industriais quanto veiculares, e não se trata de uma escolha medíocre baseada apenas no custo inicial como poderia parecer. A bem da verdade, o desenvolvimento de um motor vai sempre envolver uma série de compromissos e prioridades entre o quanto se está disposto a abrir mão para chegar num objetivo específico, e assim é possível que alguma característica eventualmente apontada como desvantagem num determinado cenário operacional não seja tão relevante em outros.

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