segunda-feira, 27 de março de 2017

Carros "populares": seria a cilindrada um parâmetro realmente justo para a classificação nessa categoria?

Definir com exatidão os parâmetros mais adequados para classificar um automóvel como "popular" é algo mais complexo do que possa parecer, englobando diversos parâmetros que vão desde aspectos práticos até burocracias que podem sofrer variações de acordo com regulamentações, preferências e condições ambientais de cada mercado. No entanto, algumas características como baixo custo de produção e manutenção (evidentemente de acordo com a tecnologia e o custo dos insumos à época do projeto), adequação a condições de rodagem um tanto precárias que possam vir a ser encontradas em algumas localidades e adaptabilidade da plataforma para atender a diferentes necessidades ainda são desejáveis, e em diferentes contextos históricos se mostraram bem aplicadas em modelos como o Ford Modelo T e o Fusca. Ao contrário dos carros "populares" brasileiros da atualidade, no entanto, cabe salientar que a cilindrada não foi tão determinante para que serem reconhecidos como tal.

A bem da verdade, a cilindrada como parâmetro para classificação de um automóvel como "popular" e tributação diferenciada no Brasil teve início com o Gurgel BR-800 SL, equipado com um motor de 2 cilindros horizontalmente opostos ("boxer" ou flat-twin) dentro do limite de 800cc estabelecido pelo então presidente José Sarney em '86. Em que pesem as limitações de um hatch subcompacto, principalmente no tocante à versatilidade, o projeto tinha seus méritos. No entanto, a escala de produção praticamente artesanal acabou sendo tão problemática quanto uma "especialização" ao uso urbano. Além da capacidade de carga e/ou acomodação para passageiros que venha a se fazer necessária em se tratando de um veículo que venha a ser o único ao que uma família tenha acesso, também não deve ser ignorada a aptidão a eventuais percursos rodoviários que possam vir a ser motivados tanto por motivos profissionais quanto no lazer e outros assuntos particulares/familiares. A reação de fabricantes estrangeiros encabeçada pela Fiat a partir de '90, quando o limite de cilindrada foi expandido para 1000cc pelo então presidente Fernando Collor de Mello passando a abranger modelos como o Uno Mille, acabou tendo maior aceitação junto ao público.

Deixando de lado as polêmicas em torno das verdadeiras motivações por trás do aumento no limite de cilindrada, bem como de uma eventual capacidade que os fabricantes estrangeiros teriam para adequar os hatches compactos à faixa de até 800cc, os carros ditos "populares" passaram a ocupar posição de destaque no mercado brasileiro a partir daquela medida tomada por Collor, e 10 anos depois cerca de 70% de todos os veículos 0km comercializados no país estavam enquadrados nessa categoria e já não se limitavam apenas aos hatches. É evidente que a evolução dos sistemas de injeção e ignição eletrônicos, bem como uma aceitação mais ampla de outros elementos mais sofisticados como os cabeçotes multiválvulas, acabaram por reduzir prejuízos ao desempenho em modelos com carrocerias maiores, mais volumosas e pesadas como sedãs, station-wagons e furgonetas, e portanto ficava mais fácil atender a consumidores em busca de um único veículo que se adequasse a diferentes necessidades da unidade familiar que fosse servir-se do mesmo. Cabe lembrar o caso da Fiat que, entre '98 e 2000 preferiu recorrer a um câmbio de 6 marchas para o Siena e a Palio Weekend equipados com o motor 1.0L de 8 válvulas ao invés de incorporar um cabeçote de 16 válvulas.

A aplicação de motores 1.0L a utilitários, como ocorreu no Fiat Fiorino e no Renault Kangoo, instiga a uma reflexão em torno das desvantagens inerentes a um limite de cilindrada definido de uma forma tão arbitrária e cujo embasamento técnico se mostrou, de fato, um tanto questionável. Submetidos ao fator de carga mais alto que seria de se esperar em uma caminhonete, combinado ao deslocamento das faixas de potência e torque para regimes de rotação mais elevados, o mito em torno de uma vantagem incontestável na economia de combustível quando comparado a um similar de cilindrada mais elevada é facilmente derrubado. Além do maior consumo, mas ainda levando em consideração a necessidade de compensar o baixo torque através de relações de transmissão mais curtas para proporcionar alguma agilidade às custas de uma diminuição da velocidade máxima, também não é possível ignorar um eventual prejuízo à vida útil do motor a ser causado pela operação prolongada a regimes de rotação mais elevados, o que viria a acarretar num custo de manutenção mais alto a longo prazo.

Tendo em vista eventuais limitações que um motor de baixa cilindrada venha a apresentar, cabe mencionar a experiência de sucesso do Japão com os kei-jidosha. Além da cilindrada, que desde '90 está limitada a 660cc no mercado japonês (JDM - Japanese Domestic Market), e de um limite de potência de 64cv estipulado na mesma época diante da popularização do turbocompressor, o tamanho contido e o baixo peso (lembrando que "kei" é leve em japonês) minimizavam o esforço ao qual o conjunto mecânico estava submetido. Embora as versões de modelos como o Subaru Vivio e o Daihatsu Cuore que chegaram a ser oferecidas no Brasil durante a década de '90 fossem mais simples, não havia impedimentos para a presença de elementos mais sofisticados oferecidos ao público japonês como o câmbio automático que favorecia o conforto nas congestionadas metrópoles e a tração 4x4 que se mostrava útil em condições de baixa aderência como a presença de neve na pista. Naturalmente, a questão das limitações de cilindrada e tamanho também suscitam controvérsias não só no Japão mas também em mercados de exportação. Se por um lado a Subaru mantinha o motor de 0.66L no Vivio em todos os países onde foi comercializado, por outro a Daihatsu lançava mão de motores maiores para o Cuore como o de 0.8L que foi usado no Brasil.

Ainda que as restrições de comprimento em 3,40m, largura de 1,48m e altura de 2 metros em vigor desde outubro de '98 pudessem sugerir uma limitação a hatches, também surgiram utilitários na classe kei como o jipinho Suzuki Samurai e a microvan Suzuki Carry, que gozaram de algum prestígio em mercados internacionais, e no caso da Carry acabou tornando-se um dos veículos mais copiados do mundo tanto em versões licenciadas como a Daewoo Damas sul-coreana quanto uma infinidade de modelos chineses. Como já seria de se esperar, nas versões destinadas à comercialização fora do Japão predominam motores acima de 660cc. Embora restrições com base no tamanho pudessem se tornar impopulares no Brasil, tanto em função de um comprometimento na capacidade volumétrica de carga e na acomodação de passageiros em um jipinho quanto na percepção de uma menor proteção aos ocupantes em caso de colisão frontal a bordo de uma van com posto de condução avançado, é coerente a estratégia japonesa de relacionar a cilindrada ao tamanho máximo para evitar que um motor tão diminuto trabalhe muito sobrecarregado a ponto de tornar o desempenho insatisfatório e sacrificar a economia de combustível.

Convém lançar uma observação sobre o Toyota Etios e o Peugeot 208, que de certa forma fugiram à regra ao usar somente motores acima de 1.0L mesmo quando os respectivos fabricantes dispõem no exterior de motores que poderiam ser enquadrados no limite de cilindrada que os enquadraria na definição de carro "popular" no mercado brasileiro. No caso do Etios, disponível com motores de 4 cilindros entre 1.3L (exclusivo para o hatch) e 1.5L (tanto para o hatch quanto para o sedan), o desempenho foi mais enfatizado pela Toyota, valendo-se ainda da correlação que o consumidor brasileiro ainda insiste em fazer entre cilindrada e prestígio mesmo sem levar em conta a tecnologia aplicada ao motor. Já a Peugeot vem enfatizando justamente na eficiência do motor de 3 cilindros e 1.2L, que se mostra competitivo também diante da versão de 1.0L do mesmo motor disponibilizada em mercados estrangeiros. Há de se levar em consideração ainda a escala de produção que acaba por favorecer os motores acima de 1.0L, beneficiados também pela aplicabilidade a modelos de porte mais avantajado (e naturalmente mais pesados) que um hatch compacto.

Outro caso em que a cilindrada se mostrou um parâmetro até estúpido para que um carro pudesse ser classificado como "popular" foi o Fusca "Itamar" produzido entre '93 e '96 com o tradicional motor boxer refrigerado a ar de 1.6L, valendo-se de uma exceção especialmente aberta pelo então presidente Itamar Franco para que motores refrigerados a ar destinados ao uso em carros "populares" pudessem ter uma cilindrada mais alta. De certa forma, apesar do uso mais intenso de materiais nobres como liga de alumínio-magnésio na produção do motor, bem como do processo de manufatura com um menor grau de automação em comparação a modelos de projeto comparativamente mais moderno, o Fusca evidenciou que havia espaço para um veículo com menor complexidade mecânica e uma aptidão maior a condições de rodagem severas que se mostram mais desafiadoras para uma concorrência que à época se concentrava em versões depauperadas de compactos e subcompactos europeus projetados entre as décadas de '70 e '90 com motores um tanto subdimensionados (e ainda mais limitados para suportar melhor a qualidade inferior da gasolina comercializada no Brasil).

Também merece menção especial a Fiat, que disponibilizava em mercados de exportação uma versão de 8 válvulas e 67cv do motor Fire 1.3 ao invés do 1.0 de 16 válvulas e 70cv exclusivo para o Brasil. Ainda que a potência parecesse favorecer o motor menor, o torque em baixas rotações mais farto no 1.3 o tornava até mais econômico, além do custo de produção menor inerente ao cabeçote mais simples. Entre o fim de 2002 e o começo de 2003, a Fiat acabou substituindo no mercado nacional o motor 1.0 de 16 válvulas pelo 1.3 de 8 válvulas, sem aumento de preços nos modelos afetados. Curiosamente, como naquele período ainda havia alguma procura por modelos movidos somente a etanol (então referido comercialmente apenas como "álcool"), que também eram favorecidos por uma tributação diferenciada, o antigo motor Fiasa ainda foi mantido ao menos até o final de 2004 apenas numa versão de 1.5L para atender a essa parcela do público consumidor enquanto os "flex" começavam a se consolidar. A disponibilidade do motor de 1.5L a etanol como opção para o Siena Fire, que teve como padrão o motor Fire 1.0 de 8 válvulas a gasolina até que se tornasse "flex" em 2004, de certa forma acabava por também reforçar a incoerência no uso da cilindrada como parâmetro para classificar um carro "popular".

A cilindrada como único fator para a classificação de um veículo na faixa tributária dos "populares" leva ainda a algumas incoerências, como a inclusão de modelos que no mercado brasileiro são até vistos como "de prestígio" como o Volkswagen Golf 1.0TSI que recorre ao turbo para proporcionar um desempenho mais aceitável a um modelo desse porte. Por mais que alguns possam argumentar que o benefício fiscal acabe sendo o único motivo para uma incorporação mais frequente de tecnologias destinadas a uma melhoria da eficiência energética como seria o caso do downsizing aplicado ao Golf, e até certo ponto não deixem de ter razão, não deixa de ser um desvio da proposta original que era simplesmente tornar um automóvel 0km acessível a uma parcela mais expressiva da população brasileira. Dessa forma, não seria de se estranhar que os mesmos defensores de um benefício fiscal a modelos de classes tidas como mais "nobres" no mercado brasileiro em função da incorporação de tecnologias voltadas à economia de combustível tivessem um menor apego à cilindrada, abrangendo assim também os híbridos como o Toyota Prius mesmo sendo dotado de um motor de 1.8L a gasolina associado a 2 motores elétricos.
Considerando ainda a operação mais intermitente do motor de combustão interna num híbrido durante o tráfego urbano, bem como a configuração um tanto conservadora que estes tem adotado mesmo nesse período em que o turbo e a injeção direta vão se massificando em modelos com um sistema de tração mais convencional, convém lançar um olhar sobre outros aspectos que norteiam o desenvolvimento de um motor. O recurso a um prolongamento da abertura das válvulas de admissão, avançando sobre a fase de compressão num motor de 4 tempos do ciclo Otto, tem como premissas emular uma característica inerente ao ciclo Atkinson que é a duração mais longa da fase de expansão em comparação à compressão e também diminuir as chamadas "perdas por bombeamento" por meio de uma redução na compressão dinâmica, e acabou tornando-se muito comum nos híbridos. Um tópico que poderia suscitar discussões mais acaloradas especialmente no Brasil quando se recorre a esse expediente é a menor adequação ao uso do etanol, que apresenta maiores dificuldades para vaporizar durante a partida a frio quando a temperatura ambiente encontra-se muito baixa, e alguma tentativa de induzir um maior aquecimento aerodinâmico valendo-se da variação de fase do comando de válvulas para promover o fechamento das válvulas de admissão em parâmetros mais próximos dos motores mais tradicionais até poderia servir para contornar esse problema mas dependeria de uma detecção prévia do teor de etanol no combustível ao invés de fazer correções de mistura de acordo com a medição efetuada após a combustão pelo sensor de oxigênio (popularmente conhecida como "sonda lambda").

Por mais incrível que possa parecer, outro modelo que de certa forma instiga a uma reflexão sobre as melhores estratégias para nortear o projeto de um motor adequado à proposta de um carro "popular" é o Jeep Willys original. A disposição das válvulas laterais aplicada aos primeiros modelos militares e também a modelos civis até o CJ-3A, apesar de ter algumas limitações inerentes aos fluxos de admissão e escape que forçam a um estreitamento das faixas de rotação, bem como a dificuldade em implementar taxas de compressão mais elevadas, ainda possibilita um layout mais compacto e leve do motor como é possível observar comparando a altura do capô entre um Willys MB da época da 2ª Guerra equipado com o motor Go-Devil de 2.2L com 4 cilindros e válvulas laterais e um Willys CJ-3B que já contava com o motor Hurricane da mesma cilindrada mas que já incorporava as válvulas de admissão no cabeçote enquanto mantinha as de escape no bloco (o popular "cabeçote em F"). Ainda que à primeira vista pareça uma configuração totalmente obsoleta e injustificável, a meu ver seria um tanto precipitado ignorar alguns benefícios que o recurso às válvulas laterais podem proporcionar a um projeto que venha a ser balizado pelo baixo custo na ausência de políticas tributárias direcionadas às baixas cilindradas.

Naturalmente um motor de concepção mais moderna com as válvulas no cabeçote é capaz de proporcionar um desempenho mais vigoroso tanto numa mesma faixa de cilindrada quanto em alguns casos numa inferior, sobretudo em função da aptidão a operar em faixas de rotação mais altas e da maior liberdade para alterar as taxas de compressão, mas o custo ainda foi um fator preponderante para que modelos pós-guerra como o Renault 4CV que já foi lançado com válvulas no cabeçote ainda tivessem concorrentes fiéis às válvulas laterais como o Ford Anglia E04A. Embora numa comparação direta entre o motor Renault Billancourt de 747cc usado no 4CV e o Ford Sidevalve de 933cc que equipou o Anglia não haja tanta discrepância entre as faixas de rotação, e surpreendentemente o pico de torque do Anglia seja atingido num regime de giro 15% mais elevado enquanto a potência máxima do 4CV é situada numa rotação apenas 2,5% superior, é mais frequente que um motor de válvulas laterais apresente tanto o pico de potência quanto o de torque a rotações consideravelmente mais baixas. Potência e torque específicos (divididos pela cilindrada) também costumam ser mais baixos, tanto em função dos fluxos de admissão e escape um tanto tortuosos quanto pela taxa de compressão frequentemente mais baixa. No entanto, o que poderia parecer um problema se mostra justificável diante da diminuição do risco de pré-ignição (a popular "batida de pino" ou "detonação") quando estiver em uso uma mistura ar/combustível mais pobre (menor quantidade de combustível em proporção à massa de ar), e também não provocar um aumento considerável das emissões de óxidos de nitrogênio (NOx) embora tal parâmetro não recebesse tanta relevância à época.

De um modo geral as características que se revelam mais coerentes à proposta de um carro "popular" estão relacionadas à aptidão para atender a usuários com os mais diferentes perfis dispondo de orçamentos restritos, sem desconsiderar os contextos econômicos e sociais de cada época. Nesse sentido, uma intervenção excessiva de burocratas que demonstram não dar a devida atenção a critérios técnicos pode vir a se tornar na verdade mais problemática do que pareça à primeira vista. Enfim, em meio a tantos parâmetros que possam definir o quão próximo um veículo esteja de atender tanto a uma maior variedade de condições operacionais quanto a necessidades mais específicas de alguma parte do público, tomar apenas a cilindrada como referência não deixa de ser uma medida injusta tanto para os consumidores que ficam limitados a opções mais precárias quanto para os fabricantes que se veem obrigados a fazer gambiarras que nem sempre justificam o custo de produção.

3 comentários:

Adalberto Day disse...

Amigo, obrigado pelo comentário em meu blog e parabéns pelo seu belo trabalho.
Sucesso!
Adalberto Day cientista social e pesquisador da história em Blumenau.

cRiPpLe_rOoStEr a.k.a. Kamikaze disse...

Disponha.

Dieselboy sa Maynila disse...

Ya he visto de eses autos que dices "populares" hazta con motores más chicos, incluso un vocho de 200cc con motor chino de moto, pero estoy de acuerdo con lo que dices. Además, iba a ser gracioso ver un auto moderno con esa configuración tan vetusta de valvulas laterales.

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